Para além de uma câmera e de uma ideia na cabeça 

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Hugo Anikulapo é um apaixonado pelo cinema, mas foi uma paixão descoberta aos poucos e resultado de um caminho singular. Formado em Eletrônica e tendo estudado por um tempo Engenharia da Computação, Hugo é uma daquelas pessoas curiosas que desmontam coisas para descobrir como elas funcionam e, a partir daí, refazer de um jeito próprio. “Com um tempo, descobri que eu gostava, realmente, da criação, independente da plataforma. O cinema me mostrou uma possibilidade quase infinita de criação. Eu posso criar histórias que desafiam a própria lógica, a física e a matemática. Gosto desse poder de criação e reprogramação do imaginário”, ressalta.

Zózimo Bulbul, pioneiro do Cinema Negro no Brasil, também deixou sua marca em Hugo. “Ele sempre falava que o cinema é uma arma. No meu entendimento, é uma arma muito poderosa criada pela humanidade porque tem o poder de matar fisicamente, literalmente, fisicamente, além de matar a subjetividade e o espírito, a alma. Mas também tem o poder de ressuscitar, reprogramar, reconstruir imaginários e subjetividades, o espírito. Hugo é enfático quando diz que não é sorte ou privilégio o fato de ele ter chegado onde chegou. “Sou o resultado de lutas de pessoas que vieram antes de mim, então dizer qualquer coisa que não fosse isso seria um grande desrespeito”. 

Formado em Direção pela Academia Internacional de Cinema (AIC), Hugo Anikulapo faz parte do coletivo carioca Siyanda e já dirigiu sete curta-metragens, sendo que o último deles, “No Caminho de Casa”, foi exibido no 26º Festival de Tiradentes. Para além de realizador audiovisual, Hugo, junto à sua irmã, Nathali de Deus, criaram uma empresa voltada para equipamentos audiovisuais, a WoTec. Tendo como principal público alvo pessoas pretas, a empresa tem o cuidado de finalizar seus equipamentos com cores vibrantes como estratégia para driblar a violência racista dentro das comunidades do Rio de Janeiro. “Eu fiz um steadicam com cano PVC, e, como tudo é preto, eu ia pintar de preto, mas na hora me veio um estalo. ‘Se eu ficar com isso na mão, pode ser confundido com uma arma’”. Hugo resolveu pintar o equipamento de azul, e relembra que, uma semana depois dessa reflexão, um sargento da PM atirou e matou dois rapazes na Avenida Brasil, Rio de Janeiro, por ter confundido um macaco hidráulico com um fuzil.

Na entrevista, que foi editada para melhor compreensão e concisão, Hugo Anikulapo conta um pouco sobre sua trajetória e sobre o fazer Cinema Negro.

Egbé: Sua irmã, Nathali de Deus, também compartilha da sua paixão pelo cinema. Vocês sempre trabalharam juntos?

Hugo Anikulapo: Na verdade, foi ela que me levou para o cinema. Ela é formada em Antropologia e tem mestrado em Relações Étnicos Sociais pela CEFET-RJ. Fomos juntos para o primeiro curso livre de cinema que eu fiz, era o segundo dela, e concluímos juntos. Ela é roteirista e tem um filme infantil muito bacana, o “Manga com Leite”. Nem sempre a gente trabalha junto, mas sempre que podemos, trabalhamos.

Egbé: Equipamentos para a produção cinematográfica não são baratos, como você conseguiu driblar esse obstáculo nas suas primeiras produções?

HA: Eu sempre gostei de eletrônica, sempre gostei de robótica, sempre gostei de fabricar coisas. De 2015 para 2016, eu entrei num curso de cinema e é isso, tudo muito caro. Com meu FGTS comprei uma câmera Nikon 5200, o que já era muita coisa. Gosto de falar que a grande mentira do Glauber Rocha é que para fazer cinema só precisa ter uma câmera e uma ideia na cabeça. Isso aí é reflexo de uma realidade que não é a minha. Ele falava sobre a escassez do cinema independente, mas a escassez dele é diferente da minha, e a gente descobriu na prática que isso era uma mentira. Simplesmente, a fala de um playboy que achava que tinha alguma noção da realidade brasileira quando, na verdade, não. E a gente descobriu na prática que não possuíamos recursos para fazer cinema, mas tínhamos uma coisa que poucos tinham que era o conhecimento e a fabricação de coisas. O meu curso de eletrônica, o meu curso de engenharia e o incentivo que meus pais me deram durante toda a minha vida me deram essa habilidade de construir coisas, de ver um problema e falar: “Isso eu consigo resolver”. A partir disso, a gente começou a fazer equipamentos muito na improvisação. Até que surgiu um filme mais complexo que exigia um negócio mais estabilizado, então passei uma semana projetando um slider motorizado e programável. A gente conseguia fazer time-lapse, tinha regulagem de velocidade e foi super legal. Até aquele momento, era o projeto mais complexo que eu tinha feito para o cinema e para o audiovisual. A gente viu o problema e resolveu o problema. Depois começamos a entender melhor o que era cinema e o que era cinema para pessoas negras, e começamos a perceber que grande parte desses problemas são compartilhados e, daí, surgiram outras ideias.

Egbé: Infelizmente, o risco de policiais confundirem materiais para a produção cinematográfica por armas de fogo pode custar uma, ou mais, vidas negras. Você, pessoalmente, já se sentiu inseguro em alguma gravação dentro de sua comunidade?

HA: Eu nunca morei numa comunidade, mas sempre filmei em algumas, e aí, um dos primeiros equipamentos que a gente fez foi muito no improviso. Fiz o steadicam com cano de PVC e, como tudo é preto, eu ia pintar de preto, mas na hora me veio um estalo. “Se eu ficar com isso aqui na mão, pode ser confundido com uma arma, vou pintar de azul.” Uma semana depois dessa reflexão, um sargento da PM atirou e matou dois rapazes na Avenida Brasil, perto aqui de casa, porque confundiu um macaco hidráulico com um fuzil. Na realidade, tudo é motivo para matar pessoas pretas. Vira uma grande desculpa para saciar o instinto psicopata e racista que o Estado tem quando diz respeito a pessoas pretas. A partir desse momento, a gente começou a entender que essa tal neutralidade na produção tecnológica nunca existiu. Tudo o que é produzido, escrito, feito, manufaturado, é resultado da reflexão das necessidades e das ideologias carregadas por aquelas pessoas que fabricam, criam e escrevem essas coisas. Nesse processo de entendimento, de que os nossos  problemas de acesso aos equipamentos são compartilhados, são coletivos porque a desgraça transatlântica negra é coletiva, começamos a enxergar isso como um negócio. Obviamente, os steadicams não podiam ser pretos, pintamos de outras cores e, hoje, minha esposa, na época namorada, teve a ideia de colar tecidos africanos e ficaram lindos. Todo mundo comprava, todo mundo gostava, vendemos bastante. Depois de um tempo, compramos três impressoras 3D, o improvisado morreu e viramos uma empresa de fabricação digital de equipamentos audiovisuais. Tudo o que vai na mão é sempre muito colorido porque nosso público alvo principal são pessoas pretas. Certa vez, Yasmin Thayná falou que as coisas que a gente fabrica parece um brinquedo. Eu falei: “Caraca, gostei disso”, achei bacana. Prefiro ser confundido com uma criança com um brinquedo na mão do que tomar um tiro”.

Egbé: Houve outro episódio que catalisou essa ideia?

HA: Eu trabalhei embarcado por dois anos e quando a gente trabalha embarcado, a gente tem um estímulo muito grande para perceber situações de risco. Então, a gente que é preto tem essa percepção de risco, a gente olha para aquele negócio e pensa: “Já aconteceu? Não aconteceu, mas pode dar problema”. Então nós fomos guiados por isso, por essa nossa percepção e, posteriormente vieram casos de guarda chuva, vieram não, sempre existiram, a gente que foi tendo acesso a essas notícias, de guarda chuva, de tripé de câmera…

Egbé: Hoje, seus produtos estão dentro da startup Wotec, quais são os equipamentos que a empresa produz?

HA: Então, é difícil a gente falar tudo até porque a gente produz muita coisa por encomenda, mas os nossos produtos de linha, hoje, são os três tabelas, fazemos personalizado porque também temos uma marcenaria. Temos o shock mount, que são aquelas suspensões para microfone, fazemos presilhas elásticas… Posso passar a tarde inteira falando o tipo de equipamento, produzimos muitas coisas. Um dos nossos grandes valores é ser justo na hora de cobrar, porque a gente não pode repassar o modus operandi capitalista para a nossa comunidade com todos os problemas de acesso financeiro que a gente tem.

Egbé: Finalmente, podemos dizer que o Cinema Negro surge, também, da necessidade de pessoas pretas se apropiarem de suas próprias narrativas, além de se apresentar como um potente recurso antirracista. Como você avalia este cenário?

HA: O primeiro filme de Cinema Negro da história brasileira, que se sabe até o presente momento, é o Alma No Olho, de Zózimo Bulbul. O filme de 73 inaugurou o movimento e veio do fato dele ser tolhido de contar suas próprias histórias ou de querer dar dignidade para os personagens que ele atuava. Então, o Cinema Negro nasceu com essa vocação de ser um cinema que quer bem às pessoas pretas e quer dar voz a essas narrativas. Nesse sentido, sim, o cinema tem essa vocação de apoiar pessoas negras. O Cinema Negro é muito mais que estética, que um estilo de direção. É um lugar político, é uma prática de lidar com pessoas, uma prática de set, pode-se dizer que é uma prática de intenção do  filme. Isso tudo forma também essa vocação antirracista. Enfim, entendo que o cinema antirracista passa por esse lugar pedagógico. Mas tem filme do Cinema Negro, que é o tipo de cinema que eu faço e acredito, que não se importa com os racistas. Meu foco não é educar pessoas brancas, simplesmente não me importa.  Penso em educar pessoas pretas para lidar consigo mesmas, para lidarem uns com os outros e, construir uma comunidade mais saudável.