“Exibir cinema local e cinema negro na TV aberta deveria ser o caminho natural das coisas”, diz Aline Braga

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Durante o mês de dezembro, a Egbé Mostra de Cinema Negro, em parceria com a TV Alese, canal 5.2, realizou a exibição de filmes dirigidos por realizadores negros e negras de Sergipe. O projeto faz parte da campanha ‘Alese contra o racismo’ e levou para a tela dos lares sergipanos filmes que registram a memória, a resistência, a cultura e a beleza da nossa negritude. Para quem não conseguiu acompanhar, temos boas notícias, a TV Alese vai reprisar os filmes entre os dias 23 e 25 de dezembro, às 18h e, também, entre os dias 30 de dezembro e 1º de janeiro, com horário a ser divulgado. Em cartaz: Severo D’acelino: revisitação, O ano que a onça descansou e Aurora.

Uma figura essencial para que esse projeto tomasse forma e se concretizasse foi a jornalista Aline Braga, hoje apresentadora e produtora da TV Alese. Pessoa inquieta, mãe e militante, Aline Braga acredita que além de democratizar a produção local, a exibição dessas produções é um imperativo para a valorização da cultura do estado.

“O audiovisual sergipano estampa nossa cara, nosso jeito, nosso timbre de voz, nossa comida, nosso cabelo, nossos rios e nosso mar em um dos formatos preferidos da boa parte da população, o vídeo”, afirma Aline Braga, ressaltando que “exibir cinema negro na TV aberta, a rigor, deveria ser o caminho natural das coisas e não uma exceção à regra”.

Para Aline Braga, a parceria com a Egbé Mostra de Cinema Negro não foi pouca coisa, dando fôlego ao final da campanha ‘Alese contra o racismo’. “É importantíssimo destacar que, antes de tudo, a Egbé existe. Sem ela, a ideia de poder levar essas produções para a tela da TV Alese sequer seria gestada”, complementa.

Em entrevista concedida ao portal Egbé, Aline Braga fala como o projeto foi gestado, ressalta como o audiovisual pode amplificar debates sobre questões raciais e compartilha, entre outras coisas, suas percepções acerca da presença de profissionais negros e negras na área da Comunicação em Sergipe.


Egbé: Antes de tudo, quem é Aline Braga?

Aline Braga: Sou uma inquieta. Nasci numa família de inquietos sobre o que deve ser o mundo para as pessoas. Sou mãe, militante e alguém que deseja que a gente saiba usar nossa inteligência, nosso afeto e intuição para viver uma vida plena. Me entristeço com a prevalência do dinheiro, da moeda, sobre a vida do ser humano. Essa sou eu de todos os dias.

Dentro da formalidade do mundo em que vivemos, sou jornalista, mestrado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Sergipe, integrante do Coletivo Intervozes e da ABC Pública. Também integra a Rede de Proteção de Jornalistas e Comunicadores. Trabalho na TV da Assembleia Legislativa de Sergipe, atualmente como apresentadora e produtora.

Egbé: Como surgiu a ideia de levar para a TV Alese um pouco do cinema negro sergipano?

AB: A campanha Alese contra o Racismo foi surgindo de forma paulatina. Como em qualquer instituição, pública ou privada, ela se faz necessária para combater a discriminação de pessoas por conta da cor da sua pele e da sua origem, comportamento ainda muito forte em Sergipe, e no Brasil, e que prejudica de forma concreta as pessoas negras, seja em emprego, saúde e na ordem dos afetos, entre outros aspectos. E o Poder Público, em qualquer esfera, tem um papel fundamental, dentro da sua comunicação pública, de contribuir com uma sociedade mais justa e que atenda aos preceitos de direitos humanos constitucionais.

Nos primeiros diálogos internos que tivemos, a figura da jornalista Clécia Carla foi fundamental para que pudéssemos colocar a ideia em prática, tanto para começar a dar forma à campanha quanto com propostas que foram sendo construídas no diálogo entre os setores da Comunicação da Alese, como a TV, a Agência de Notícias e o Núcleo de Produção Digital, além da assessoria de Comunicação, na figura de Fernanda Queiroz.

Nessa construção, foi fundamental contar com a confiança do diretor de Comunicação da Alese, Irineu Fontes, do coordenador-geral da TV Benildon Santana e do coordenador de Conteúdo Thiago Aragão, um grande parceiro.

Sendo assim, a campanha foi ganhando forma durante o segundo semestre através dos programas da TV, a exemplo do Congresso em Pauta e dos telejornais. O ponta pé inicial ficou por conta do programa Elas no Comando, que apresento e que com frequência trata pautas relacionadas a direitos humanos e minorias, tendo em vista o próprio mote do programa, “Elas no Comando de suas próprias vidas”, ele voltado para pensar a vida e as demandas das mulheres, uma maioria invisibilizada, assim como as pessoas negras. Também tivemos ações internas pontuais através da comunicação entre a casa e os servidores, como proteções de tela nos computadores e, para finalizar o semestre, tivemos a felicidade de contar com a parceria da Egbé, que topou ser curadora da parte audiovisual da campanha, o que não é pouca coisa. Essa parceria deu fôlego a esse final da campanha e nos permitiu dialogar com e sobre o cinema negro sergipano através da exibição da produção na tela da TV Alese e das entrevistas feitas com as e os realizadores. E, nesse sentido, é importantíssimo destacar que, antes de tudo, a Egbé existe. Sem ela, a ideia de poder levar essas produções para a tela da TV Alese sequer seria gestada.

Esperamos que mais parcerias como essa possam ser realizadas, principalmente através do audiovisual, que precisa de uma olhar mais efetivo do poder público, seja no quesito investimento para as produções seja no quesito de investimento para garantir o acesso dessas produções para a população, que precisa se ver na tela, sempre. 

Egbé: Aproveitando o ensejo da pergunta anterior, qual é a importância de levar filmes de realizadores sergipanos negros para a TV aberta aqui, do estado?

AB: Olha, é difícil dimensionar essa importância de tão grande que é o poder do audiovisual de contar histórias, de construir pertencimento, de mostrar a essência do que é local. A importância é enorme! Falando de audiovisual, eu diria que não se pode falar de Sergipanidade sem que ela passe por essa produção. O audiovisual sergipano estampa nossa cara, nosso jeito, nosso timbre de voz, nossa comida, nosso cabelo, nossos rios e nosso mar em um dos formatos preferidos da boa parte da população, o vídeo. E produzir cinema negro é nada mais que falar da maioria da população, da capital, do estado e do país. Sendo assim, não é pouca coisa permitir que essa população se veja, para que possa se reconhecer nas roteiristas, diretoras e diretores, atrizes, nas personagens, quanto nas histórias que são contadas… Quando vemos os filmes que fazem parte dessa parceria, por exemplo, nos deparamos com paisagens que fazem parte da nossa memória ou até mesmo do nosso percurso diário. Nos identificamos com um sotaque ou com uma história muito peculiar. E nos ativa a memória, a ancestralidade… É o que nos proporciona a arte, que nada mais é do que nos representarmos em dimensão completa.

Dessa forma, ter tudo isso na TV aberta sergipana passa principalmente por democratizar o acesso a essa produção. Além disso, exibir produção local é um imperativo para a valorização da cultura das cidades e dos estados, no quesito simbólico, e para a consolidação de uma mercado do audiovisual, no sentido financeiro e de cadeia produtiva, ainda que as legislações para que emissoras comerciais veiculem produção local nunca tenham sido de fato respeitadas.

Para finalizar ou resumir, tendo em vista as questões que cito acima, diria que exibir cinema local e cinema negro na TV aberta, a rigor, deveria ser o caminho natural das coisas e não uma exceção à regra.

Egbé: Você acredita que ações como essa trazem a possibilidade de iniciar um debate sobre questões raciais não só no audiovisual, mas também entre quem assiste às produções?

AB: Com certeza. O poder do diálogo nesse caso é amplificado. Acredito que quem pode ver a Egbé a cada ano ou na própria plataforma da Egbé, ou quem agora assiste a esses filmes, por exemplo, na tela da TV Alese, poderá se perguntar e se orgulhar inclusive sobre a existência de uma mostra de cinema local, de uma mostra de cinema negra sergipana. Pensar sobre quem são as pessoas que realizam a mostra, pensar sobre quem são essas pessoas que colocam uma câmera na mão e querem filmar Sergipe, Sergipe que é pessoas, que é território, que é disputa e que pulsa. Isso com certeza leva a pensar nas questões raciais. Eu acredito inclusive que a partir dessa oportunidade muitas pessoas podem refletir sobre sua negritude, ou até mesmo assumi-la… E respeitá-la.

Egbé: Durante sua carreira você passou por diversas redações sergipanas, tanto nos veículos de comunicação, quanto em assessorias de imprensa. Como você avalia a presença de profissionais negros em espaços da comunicação?

AB: Olha, temos diversas demandas que precisam se tornar ações quando a temática é profissionais negras e negros de Comunicação. Principalmente a representatividade proporcional à população… Ou seja, penso no próprio argumento que é o ponto principal das cotas: nosso estranhamento é com a falta de proporcionalidade. É a primeira coisa que pessoas negras e não negras devem pensar: em como é possível que a maioria da população tenha a pele mais escura, mas em alguns lugares essa população não existe, não aparece. Devemos nos perguntar: “Por que isso acontece?” Essa pergunta é o passo essencial para buscarmos as respostas históricas, estruturais e gestarmos suas soluções. Na Comunicação não é diferente. O Jornalismo, por exemplo, é uma profissão que historicamente agrega um conjunto de pessoas de classe média e sua mentalidade via de regra é meritocrática e estruturalmente racista. Sendo assim, desde o equilíbrio proporcional desses profissionais numa redação até a produção de pautas e escolha de fontes é muito comum identificarmos um viés que exclui pessoas negras. Às vezes de forma racional; às vezes seguindo uma lógica que está aí há muito tempo e que a pessoa não questiona.

E bem, é necessário dizer, não precisamos somente de equilíbrio nessas redações, com uma contratação de profissionais que contemple a proporcionalidade da sociedade, mas enquanto comunicação, elemento fundamental para promover o diálogo público na sociedade, é necessário que a produção desses comunicadores possa de fato contemplar os preceitos da igualdade  de acesso a todas as pessoas, seja racial, de gênero… Contra a lgbtfobia, contra o etarismo, contra a gordofobia…

Egbé: A Egbé acredita que ter profissionais negros atuando no audiovisual e na comunicação é essencial para a transformação desses espaços e para desbancar o racismo estrutural que, infelizmente, ainda se faz presente. Como você enxerga essa questão?

AB: Eu estou com a Egbé. Acredito completamente nisso, e esse é um dos motivos da minha admiração pela Egbé e das pessoas que a fazem, dizendo isso tendo como referência pessoal Luciana Oliveira, que é a pessoa que tenho mais contato. A população negra não pode ser mais afastada do que produz. Ela produz de um tudo, mas, via de regra, quando o bolo vai ser repartido ela fica por último. Hoje, por exemplo, por conta da incidência dos movimentos sociais, movimento antirracista incluso, as pessoas estão cansadas de saber e repetir que quem está na base da pirâmide social, privada de direitos e recebendo os menores salários são as mulheres negras. Números são citados, teses de doutorado e dissertações de mestrado citam essas reflexões, debates são feitos, mas no dia a dia, sempre que as pessoas têm a oportunidade de deixar uma mulher negra confortável, com seu salário bem pago, sua dignidade intocada, sua voz ativa, sua paz elevada, via de regra as pessoas, com poder de decisão ou não, que convivem com mulheres negras e têm a oportunidade de fazer com que essa pirâmide comece a ser desconfigurada, as pessoas não fazem sua parte. Acabam fazendo o contrário: recriminam seu cabelo, questionam sua inteligência, se apropriam de suas ideias e, a reboque, comprometem sua capacidade de mostrar seu trabalho e de ganhar de forma justa por ele. É isso que o racismo faz, ainda e de maneira muitíssimo forte. 

Então, o trabalho contra o racismo estrutural caminha em duas frentes simultâneas: para construir políticas públicas para as pessoas que não têm acesso aos frutos do trabalho coletivo da população, algo macro, e dentro do que estamos falando, uma frente que diz respeito à convivência no ambiente de trabalho em si, nas questões mínimas de respeito e valorização do ser humano. Então, sim, a presença de pessoas negras no audiovisual e na comunicação é essencial para a transformação desses espaços, ainda que a saúde mental desses próprios profissionais seja também uma coisa que nos preocupa, dada a violência que significa enfrentar ambientes racistas que ainda não se transformaram ou que não querem se transformar.

Foto: Arquivo pessoal