Por: Victor Ramos
A Rede Globo tem nas telenovelas o seu principal produto de veiculação diária e exportação comercial. É impossível não reconhecer o sucesso e o alcance que as produções globais atingem, mesmo que a entrada dos serviços de streamings e sua rápida popularização tenham capturado uma larga porcentagem da audiência do canal, ainda assim são as telenovelas o produto mais consumido. Há quase 70 anos esse formato reina na televisão brasileira, desde a estreia de “Sua vida me pertence” em 1951 na TV Tupi, que várias gerações de brasileiros foram impactadas pelas histórias melodramáticas. A pesquisadora Maria Immacolata Vassalo Lopes define a telenovela brasileira como “uma narrativa da nação”, alcunha que faz muito sentido.
Mas que nação é essa representada nas telenovelas brasileiras? Percebemos que ao longo da história a população negra foi relegada a determinados papéis, estes sempre subalternizados, representando a visão que a sociedade detém dessa parcela da população. Os papéis reservados aos negros e negras nas tramas são majoritariamente os de escravizados, empregadas domésticas, “moleque” de recados, jagunços, etc. Não questiono a importância de ter esses papéis em obras audiovisuais, mas reduzir toda a complexidade de um determinado grupo social a apenas estes papéis é no mínimo problemático.
Justamente por ter um lugar tão precioso dentro da nossa cultura, eu diria que até “sagrado”, as telenovelas, principalmente aquelas exibidas pela Rede Globo, tem um forte poder de penetração social, fazendo com que os assuntos abordados em suas tramas reverberem causando grande comoção. A pergunta que fica é: como essa sub-representação interfere na subjetividade da população negra? Afinal, há quase sete décadas vem sendo exposto para uma população que majoritariamente tem a televisão como principal fonte de informação e entretenimento, que o negro serve apenas para ocupar determinados postos. É o perigo da história única, que nos alerta a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, levado a elevadas proporções.
Um dos filões narrativos mais bem estruturados da emissora são as narrativas de reprodução histórica que consagraram o horário das 18h. “A escrava Isaura”, trama de 1976 é um dos principais expoentes desse tipo de narrativa onde os brancos são vistos como os salvadores dos escravizados e os negros como pessoas invejosas e sem senso comunitário.
Nos anos 1980 com a efervescência das comemorações do centenário da Abolição e a movimentação política que marcou a década, algumas obras se destacam por apresentar o negro de forma menos estereotipada, mas ainda assim deixando bem claro a sua posição na sociedade. Podemos destacar “Sinhá Moça”, um dos clássicos da nossa teledramaturgia e que não deixa de mostrar como os brancos lutaram pela nossa liberdade, fator no mínimo equivocado já que é de conhecimento – não de todos justamente por causa dessas narrativas- que foram os negros os principais interessados na conquista da liberdade, articulando inúmeros movimentos e construindo várias formas de resistência a escravidão.
Mas, a síndrome da Princesa Isabel acompanha todas as obras que revisitam o passado histórico escravocrata. É o que podemos ver atualmente na novela inédita das 18h “Nos tempos do imperador” em que o texto destaca as palavras bem construídas da personagem que cumpriu a função de preceptora da princesa na infância, ao falar sobre liberdade dos negros escravizados. O que atitudes como essa visam expressar? Considerando o contexto que as telenovelas ocupam na nossa sociedade, cenas que enaltecem figuras históricas como o imperador e suas filhas, tentam borrar da história a participação de negras e negros como protagonista. E a partir daí aqueles que não tem acesso a outras formas de conhecimento aceitam tais narrativas como verdades. Isso é uma forma cruel de apagamento.
Houve uma tentativa ousada de construção de uma trama ampla sobre a população negra, trata-se de “Lado a lado”. Novela descrita por Lázaro Ramos como “dos sonhos” por romper com essas representações estereotipadas e apresentar a população negra com voz e agência, capaz de lutar pelos seus direitos. Mas, obras como essa parecem não ter vez, já que as suas sucessoras voltam a reproduzir aquela mesma história única a que já estamos cansados de assistir. A pergunta que fica é: mesmo com a inserção de mais protagonistas negros, será que a televisão brasileira será capaz de contar novas histórias sobre a população negra? Aguardemos e cobremos até sermos ouvidos.
*Victor Ramos é graduado em Comunicação Social Hab. Audiovisual pela Universidade Federal de Sergipe e mestrando no Programa Interdisciplinar em Cinema (PPGCINE) pela mesma instituição. Desenvolve pesquisas sobre a representação de personagens negros nas telenovelas da Rede Globo. Mantém o perfil @temnegro no instagram onde levanta discussões sobre representação social na televisão.